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sexta-feira, 16 de março de 2018

Escolhas



Apercebia-se, ao levantar, que voltava ao inferno, não que a noite não fosse também ela uma ida ao inferno mas de manhã o sacrifício que lhe era exigido para ir trabalhar era o pior momento. Arrastava-se pela casa preparando-se para sair, tudo era um esforço desmesurado, decidiu telefonar para o local de trabalho, não lhe apetecia sair de casa, alegando que por motivos de saúde não poderia comparecer. Anda pela casa como se estivesse enjaulada, iria ou não ao centro de saúde, ao serviço de urgência queixar-se de dor de estômago, dor de cabeça, taquicardia, opressão no peito, bloqueio respiratório, tristeza, raiva, revolta, estes três sintomas talvez não os mencionasse mas eram os que mais se manifestavam, lá se decidiu a ir, nem se preocupou com a aparência, ela que tinha sempre esse cuidado naquele momento era-lhe completamente indiferente.

Tinha quarenta e dois anos, a vida, até aquele desgraçado dia, tinha corrido como a idealizou dentro dos parâmetros supostamente considerados normais: uma infância excelente, uma adolescência sem grandes transtornos, formação académica excelente, formação profissional idem.

Casou com o homem, segundo namorado, que era o principie perfeito.

Teve uma filha que fez praticamente o mesmo percurso que ela, excepto o profissional, e continuava solteira, concorreu a uma bolsa de estudos para uma universidade norte americana e por lá estava.

Tinham ficado os dois na casinha que sonharam, agora iriam aproveitar ao máximo as oportunidades que surgissem nos tempos livres, economicamente viviam desafogados, e terem aqueles momentos a sós que ansiavam quando a filha ainda lá estava em casa Quando afinal ficaram sós todas essas fantasias, supostamente só dela, foram por água abaixo, afinal, grande merda, andou sempre a viver num conto de fadas criado por si, quando começaram a cair as vendas, as cataratas, que tinha nos olhos constatou que o príncipe perfeito tinha há muito tempo cavalgado para outros prados, para os braços de outra princesa.

Tentou reconquistá-lo, seduzi-lo, propondo programas diferentes, aliciá-lo com sexo mais ousado mas ele ou ficava indiferente, fazia que não percebia ou quando havia sexo, mais como forma de a contentar, era mesmo o básico: papá / mamã.

Um dia, assim sem limar as arestas, o príncipe diz-lhe que vai sair de casa, viver com a companheira que tinha já há um tempo, diz-lhe friamente que nada sente por ela, o amor morreu mesmo, depois se concordasse tratariam do divórcio e da partilha dos bens sem dramas e no momento oportuno.

Foi à consulta, por sorte o médico que a atendeu foi mais que que um profissional de saúde, era também um curandeiro de almas, juntamente com a receita para um ansiolítico recomenda-lhe que procure um especialista, de preferência um psicólogo devido ao estado depressivo que aparentava.

Só queria ir para casa, passou pela farmácia, tomar o medicamento milagroso que a fizesse esquecer o filho da puta que lhe devastou a vida.

No dia seguinte tentou consulta com o médico de família, e por sorte este atendeu-a no final das consultas marcadas, perante ele desabou num choro incontrolável, ele deu-lhe tempo, ela pede-lhe baixa, seria incapaz de trabalhar naquele estado, seria incapaz de interagir com os seus alunos do secundário, com os quais mantinha uma relação se não perfeita, era no mínimo gratificante, sempre teve a capacidade de se aproximar dos jovens, sempre pronta para os ouvir, as suas aulas, era professora de físico-química, iam mais para lá do ensino teórico e pratico da disciplina, sempre que a oportunidade surgisse outros temas eram abordados sem tabus e preconceitos.

Procurou o psicólogo recomendado pelo médico de família mas pouco crente no resultado, a psicóloga deixava-a falar, e ela falava tudo o que precisava falar, os resultados tardavam, ainda assim sentia-se mais serena, mais confiante, talvez fosse esse o resultado.

Uma tarde no quarto, depois do banho demorado, viu-se de relance no espelho do roupeiro e demorando-se nele gostou do que viu, um corpo firme bem delineado, ainda muito apetecível, qualquer filho da puta iria com ela para a cama, ccomeçou a acariciar-se e o prazer há muito esquecido retornou, nua dançava pelo quarto ao som da própria voz, cantou a até a voz lhe doer, cantava o refrão: tenho de viver, viver......

Abriu o roupeiro e num frenesim retirou toda a roupa que se acumulava e tinha decidido não vestir mais, colocou-as no chão, num monte que se ia formando, iria colocá-las num contentor para serem doadas, o mesmo fez a sapatos, botas, sandálias, ténis, malas, carteira, écharpes e toda a sorte de acessórios que se tornaram obsoletos, e continuava a cantar.

Nessa noite sentou-se em frente ao computador em busca de sites de encontros, foi vendo o que lhe poderia interessar, não sabia exactamente o que, mas perante tanta oferta seria natural surgir algo que gostasse.

De manhã tomou a decisão de mudar de visual, a começar pelo cabelo, tratamento de estética, fez as marcações necessárias, meteu-se no carro e foi em busca de lojas, começou pelas de vestuário, precisava daquelas roupas que a valorizassem, que fizessem dela o centro de atenções, atrair o olhar guloso dos homens, gastou uma pipa de massa mas a auto estima subiu patamares, e ainda mais quando, numa loja daquelas com status e de clientela exclusiva, a funcionária lhe diz que é linda e tem um corpo espectacular, riu-se mentalmente, ficou a pensar que a menina a apreciou para além do que é vulgar nas suas funções. Almoçou pela área e enquanto almoçava olhava os homens de frente, dava-lhe prazer ler a gula que via nesses olhos.

Um dia no site deu de caras com o homem à sua medida ou melhor que iria preencher-lhe as medidas, inicialmente começou por ser um diálogo afim de se conhecerem, a tal conversa da treta, tempo depois marcaram encontro num bar, nessa noite ela esmerou-se, iria ser o oposto do que pretensamente queria ser se a vida não lhe mudasse o rumo de forma cruel, iria usufruir de tudo o que futuramente ela lhe trouxesse. Quando entrou no bar deu logo com ele, aproximou-se e identificou-se, ele muito cavalheiro levantou-se e estendeu-lhe a mão dizendo o nome, pediram bebidas, e iam conversando ela observava-o, o mesmo fazia ele, ele era atraente, talvez um pouco mais novo que ela mas também quarentão. A conversa desenrolava-se com uma certa reserva, talvez porque ambos sabiam quando decidiram encontrarem-se que seria um adeus até um dia ou uma queca num quarto de hotel. Aquele ficou mesmo por ali, mas não seria o último, em todos os encontros começava por averiguar a situação económica do futuro amante, era uma condicionante, já que iria abrir-lhe as pernas e talvez usar de todas as habilidades que tinha conhecimento, riu-se quando pensou no "Kama Sutra", não o tinha consultado mas... e havia outras fontes de consulta, tinha de ser bem recompensada, se fosse mais jovem teria optado pela profissão de acompanhante de luxo de grandes figuras da sociedade mas a puta da idade não perdoa, teria agora uma avultada conta bancária e poderia reformar-se. Ainda assim selecionava os gajos não lhe fosse calhar um psicopata.

À custa de tanto "amar" os gajos proporcionavam-lhe viagens fantásticas, hotéis de luxo restaurante famosos e estadias em spas dispendiosos. Que mais uma mulher pode querer, foi a melhor opção que fez, sem compromissos sentimentais e emocionais vivia a vida duplamente, de dia, no trabalho, a professora competente, dedicada, atenciosa, que os alunos elogiavam, dizendo que estava "altamente", e os rapazes entre si comentavam que a "cota" era muita "boa", não recusavam, se surgisse, a oportunidade de a "comer".

À noite esta mulher sofria um processo de metamorfose, passava de linda a deslumbrante, de discreta a exuberante, de senhora a galdéria, cheia de "safadeza".

Um dia quando a filha regressar talvez modere o ritmo ou lhe ponha fim, quando também o corpo lhe exigir parar, até lá é para continuar. Puta por puta a de luxo é sempre melhor.







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