Translate

domingo, 19 de abril de 2020

Confinada!

Não tinha pretensão de fazer qualquer referência ao Covid - 19 mais do que as que fiz nos últimos textos, quando publiquei fotos da última viagem.
Agora decidi dar a minha modesta opinião sobre um dos flagelos que assolam o planeta, mais propriamente a humanidade, alguma mais que outra infelizmente, se falar no planeta, este pelos vistos está grato ao vírus, a poluição, ainda que pouco e por pouco tempo, está a diminuir, a atmosfera está mais limpa, as cidades estão mais "respiráveis", nos mares, junto à costa surgem espécies  marinhas que habitualmente não se aproximam, os animais selvagens, intrigados pela ausência dos humanos, passeiam-se pelas ruas das localidades, inverteram-se as posições, os humanos estão enjaulados.
E nós como estamos a lidar com isto? Os outros não sei, ou melhor sei dos meus mais próximos, diariamente através dos meios disponíveis estabelecemos contacto. Pelo mundo a informação está aí, constante de minuto a minuto, vejo uma vez por dia e em determinada hora que julgo ser a mais credível.
Pessoalmente não sinto grandes mudanças na minha vida, é óbvio que sinto falta de algumas rotinas e obrigações que proporcionam-me prazer e contribuem para o meu bem-estar físico e psicológico, mas não vou "passar-me dos carretos", tenho uma espécie de capacidade de adaptação camaleónica, e, como sabem, gosto de estar só, de conviver comigo, entendo-me muito bem comigo. 
Entre ler, escrever, testar receitas de culinária, ouvir música, por vezes em alto som para dançar pela casa, ver filmes que adoro, fazer práticas de ioga, dadas pelo meu professor via online, meditação, aplicar ReiKi em mim e enviar para a humanidade e para o planeta, ginástica, tratar das minha plantas, inclusive falar com elas, levar o cão à rua, fazer compras uma vez por semana e ainda cuidar da casa, com todas as tarefas que isso implica, os dias vão passando, faz hoje precisamente um mês que estou confinada no lar e talvez ainda tenha de ficar por mais um tempo, logo se verá! Tudo o que faço é, talvez, o que o comum dos mortais faz nestas situações, quando é pedido isolamento social, é claro que há sempre alguém a transgredir as regras, infelizmente. 
Deixando de falar de mim, o mais preocupante será o que está para vir, não costumo ser alarmista, nem pessimista, nem agoirenta, mas neste momento não sou capaz de ver "luz ao fundo do túnel", as consequências serão bem marcantes nas áreas da política, social, económica, cada uma ao falhar levará indubitavelmente outras por arrasto, e como sempre e desde sempre serão os mais pobres a sofrer na pele. Quero acreditar que esta pandemia poderá fazer a humanidade repensar se a vida valerá a pena ser vivida como até aqui, talvez para alguns isso possa acontecer, deixarem de ser tão materialistas e consumistas, descobrindo outros valores, que, talvez, por falta de se encontrarem a si mesmo ainda não o tinham feito, deixar de ter para passar a ser. Outros irão, talvez, simplificar a vida, apreciando-a naquilo que ela tem de melhor, sem futilidades de permeio, despojando-se de valores que impedem o crescimento. Infelizmente há sempre o reverso da medalha, haverá quem se irá aproveitar em benefício próprio desse descalabro, usurários, vendedores de "banha da cobra" profetas, e fenómenos que nunca deveriam ser vulgares, mas são, nem permitidos  irão assumir proporções dantescas como é o caso da violência doméstica, assaltos, fome, e outros itens que de momento não me ocorrem.
A humanidade, na generalidade, deveria ser "obrigada" ou "obrigar-se" a fazer de vez em quando confinamentos, para encontrar a finalidade de andarmos por cá, para que depois o único "vírus" que a contagiasse fosse o Amor, só pelo Amor o homem se libertará. Estou a exceder-me, vou parar por aqui, parece que estou a profetizar, nada disso é apenas por os pensamentos por escrito, não importando que sejam lidos por alguém, porque é uma forma de serenar e ter esperança que tudo vai passar.   
   

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Vingança

As histórias começam quase sempre por: Era uma vez… e esta não foi excepção à regra. Contavam há várias gerações, que, ali, na aldeia tinha acontecido uma grande tragédia. Ninguém soube até hoje como foi o início dessa tragédia, dessa desgraça tamanha como dizia o povo, sabia-se sim que eram amantes, e que se mataram por amor. E assim a história foi passando de geração em geração, e cada narrador foi acrescentando um ponto, pois, como diz a sabedoria popular, quem conta um conto acrescenta um ponto.
Quando me contaram era quase uma tragédia grega, com dois infelizes seres humanos que por capricho dos deuses tiveram um final infeliz, trágico melhor dizendo.
Ela, Mariana, era a moça mais linda da aldeia, olhos como carvão, assim como os longos cabelos, que lhe caiam em cascata pelos ombros, e lhe emolduravam o rosto trigueiro onde um sorriso luminoso e cativante estava sempre presente, a juntar a estes atributos tinha um corpo bem torneado, bem feito como diziam os admiradores fossem mais novos ou mais velhos, que os deixava a suspirar e até talvez à noite a sonhar. 
Ele era filho do maior e mais poderoso latifundiário da região, dono de uma herdade a perder de vista. Não vivia com o pai, a mãe faleceu tinha ele quinze anos, vivia na vila onde estudara e onde trabalhava, era engenheiro. Era um moço, como diziam as mulheres, de encher o olho, qualquer uma delas, solteiras, casadas, que trabalhavam nos campos ou na casa do pai sentiam o coração a palpitar quando ele passava a cavalo pelos campos ou quando entrava em casa suado a despir a camisa, e a pedir para lhe levarem água ao quarto para o banho, naquela época não havia água canalizada, deitavam-lhe olhares gulosos, e desejavam que ele llhe desse atenção, miníma que fosse, só que não sabiam que o pai o tinha proibido, ameaçando-o de o deserdar se tivesse a ousadia, a pouca vergonha de se aproximar de qualquer uma delas, claro que se referia às mais jovens e solteiras, conhecia a fama do filho, sabia que se não fosse assim, com esta imposição, o filho faria uma razia a todas as moças fossem casadas fossem solteiras, ainda lhe aparecia alguma com um filho nos braços.
Não se conheciam, Rui nunca entrava na aldeia, raramente vinha à herdade, alguns fins-de semana espaçados, por vezes uns dias das férias, a herdade tinha uma enorme piscina onde gostava de exibir o corpo atlético, e vinha no início do mês de Agosto para a festa da Sª. do Monte, não ia na procissão, ao baile, à quermesse nem ao arraial, só vinha mesmo porque o pai lhe exigia, porque gostava no dia da padroeira juntar a família que se resumia a um sobrinho que vivia em Lisboa, mas tinha muitos amigos, e esses marcavam presença assim como os seus familiares.
Faltavam poucos dias para a festa da aldeia, que andava num frenesim, era enfeitar os mastros, era montar as barraquinhas para vender produtos da região e trabalhos de mãos habilidosas. A procissão sairia da capela da aldeia, levando a imagem anteriormente colocada ali numa procissão durante o mês de Maio.
As moças solteiras, e não só, andavam com a cabeça no ar, a imaginarem como se vestiriam, embora já tivessem a roupa preparada para a ocasião há meses, para impressionar os rapazes e talvez um futuro marido, as casadas ainda que a moral estabelecida apelasse à discrição, também pensavam intimamente em sedução, nalgum olhar mais atrevido, mais convidativo, e, porque não, num piropo mais audaz. Viria gente de toda a zona em redor, e até da vila. O pároco e as beatas andavam a embelezar a capela no cimo do monte, que distava da aldeia dois quilómetros e cujo acesso se fazia por um caminho empedrado pelos homens da aldeia.
Conheceram-se por puro acaso, ou talvez pelas manobras do destino, Mariana apanhava ervas para os coelhos na estrada que ia para a vila, a trinta quilómetros de distância, ao final da tarde, ainda o calor se fazia sentir bastante forte, Mariana ergueu o busto e ajeitou o chapéu que lhe cobria a cabeça e escondia o rosto, quando, nem se apercebeu, um cavalo surge num galope desenfreado na sua direcção, assustou-se e atirou-se para a berma, caindo no valado.
Quando se tentou levantar, ficou aterrada, viu um cavalo parar junto de si, e um homem saltar e estender-lhe a mão ao mesmo tempo que lhe pedia desculpa, dizia-lhe o nome. Ainda atordoada estendeu-lhe a sua e foi erguida do chão como uma pena, ficou intimidada, não tirava os olhos do chão, ele atencioso perguntava se estava bem, repetia as desculpas pelo comportamento, Mariana levantou os olhos e cruzou-os com o azul mais lindo que tinha visto, o azul do céu naquela hora, eram assim os olhos dele, muito envergonhada balbuciou qualquer coisa e correu para casa que ficava próxima.
Chegou a casa, não percebia, ou melhor não queria perceber, porque ficou com o coração a bater desalmadamente, como se fosse sair pelo peito, dizia para si que era do susto, nunca tinha tido um cavalo tão próximo de si, até tinha medo deles, mas também sabia que tinham sido aqueles olhos, aqueles olhos azuis não lhe saiam da cabeça.
Mariana era casada com António, conheciam-se desde sempre, namorados de infância, depois na adolescência, uns anos depois casaram, já fazia cinco anos e os filhos tardavam, António estava desiludido, para ele Mariana era seca, erva daninha como se dizia na aldeia, mas talvez um dia...
António era carpinteiro, tinha uma pequena oficina num pedaço de terra que os pais, já falecidos, lhe doaram, passava ai muito do seu tempo.
E chegou a romaria da Senhora do Monte, toda a aldeia engalanada, a procissão começou a tomar forma no adro da capela, sairia às seis horas da tarde, com a banda filarmónica da vila, o pároco que vinha ali aos domingos dar o culto, os andores onde se destacava, por ser o mais enfeitado, o da Senhora do Monte, os pendões, os anjinhos, os habitantes mais nobres, um pouco menos pobres que outros, como o dono da venda, e o dono do armazém que vendia tudo o que fosse para o trabalho do campo, alfaias agrícolas, sementes, etc.
Também os ricos proprietários da zona marcavam presença, no final o restante povo anónimo, que iriam fazer as suas promessas e pagar outras, puseram-se a caminho do monte, ainda com o calor a fazer-se sentir, e os mais velhos a ficarem para trás
Mariana fazia parte do grupo mais jovem, assim como António, iam atrás das individualidades, conhecia alguns latifundiários incluindo o pai de Rui, mas nada sabia das suas vidas, apenas que eram muito ricos, o conhecimento provinha de os encontrar na venda, que tinha inclusive uma taberna onde os homens se juntavam ao fim do dia ou ao Domingo para "afogar mágoas", jogarem à malha, ou deitar o olho às mulheres que iam à venda, à missa, ou no armazém. 
Quando a procissão chegou à capela a imagem foi conduzida para o seu interior, muito singelo, apenas um altar em pedra, que por esses dias tinha uma linda toalha de renda, um cálice, uma patena,  e era enfeitado por vistosas flores, tinha também um nicho onde a imagem ficaria colocada depois da missa.
 Finda a missa o povo dispersou-se voltando à aldeia, voltariam a encontra-se à noite, depois da janta, para o baile, com a banda da vila, Mariana foi ao baile com António, e o coração quase ia estourando dentro do peito, Rui estava ali, e olhava-a intensamente, com tal magnetismo, que se sentiu tonta e com falta de ar, António apercebeu-se, e, a seu modo, um pouco brusco e rude, quis saber o que se passava, estavam a dançar e ela ficou como se o chão lhe faltasse debaixo dos pés. Nada, não tinha nada, apenas cansada, queria voltar para casa. Estava feliz, tinha-se esmerado  num vestido que a favorecia, que a deixava deslumbrante, estava vaidosa do seu talento como costureira, o vestido tinha sido criação sua, desenhado, e confecionado pelas suas mãos, mas só queria voltar para casa, regressaram a casa, e António muito à cautela pergunta-lhe se está grávida, como desejava que a resposta fosse um sim, mas não, não estava grávida, apenas cansada.
E o povo retomou as suas habituais rotinas, Mariana não esquecia Rui, principalmente à noite tinha tanto medo de, num sonho, inadvertidamente pronunciar o seu nome, e o desejo que sentia por ele. Aos domingos Rui começou a aparecer na taberna a meter conversa com os frequentadores, e por vezes a jogar à malha, nas primeiras vezes quando os olhares se cruzavam, ao sair da capela e passar pela taberna, baixava os olhos, sentia um calor a espalhar-se pelo corpo e corar, era morena, talvez não se notasse.
Um Domingo, ia sempre sozinha à missa, António nunca a acompanhava, era crente à sua maneira, para ele ir até ao seu pedaço, estar na natureza, era a forma de encontrar Deus, Mariana deixou-se ficar, depois de todos saírem da capela, e também o pároco, levantou-se e foi acender uma vela junto da imagem de S. Sebastião, na época todos os espaços religiosos ficavam abertos depois do culto, só à noite eram fechados, ninguém roubava  nesse espaços sagrados, sentiu uma presença, virou-se e Rui estava junto de si, ficou petrificada, não se movia por mais que a cabeça lhe ordenasse o coração queria ficar, Rui levantou-lhe o rosto e os olhos procuraram-se, perdeu a noção do tempo e do espaço, sentiu os lábios dele nos seus, entreabriu a boca e uniu-a à dele, num beijo longo, intenso, que lhe fazia arder o peito e desejar entregar-lhe o corpo, e até a alma, pela primeira vez na vida sentiu a paixão, arrebatadora, violenta e irracional.
De repente teve consciência do que estava a acontecer, soltou-se dos seus braços, teve um calafrio quando viu onde estava, por sorte, estavam encobertos por uma coluna, num recanto que dava acesso à sacristia. Saiu rapidamente, quase correu, e ao passar em frente à taberna, onde os homens jogavam à malha, parando à sua passagem e olhando-a, sentiu-se envergonhada, parecia que todos sabiam o que se tinha passado na capela.
Era costureira, repito, entregava trabalho a clientes na vila, senhoras que lhe encomendavam vestidos e outras peças, por vezes vestidos de cerimónias, ia à vila de quinze em quinze dias na velha camioneta que uma vez por semana, uma vez de manhã outra à tarde, levava e trazia os moradores que necessitavam de se deslocar à vila para tratar de assuntos que só ali era possível.
Naquela segunda feira do início de Setembro foi à vila entregar algumas peças, aproveitava também para se encontrar com uma amiga de infância que depois de casar foi morar na vila, almoçava com ela e depois, antes da camioneta partir, ia fazer algumas compras para o lar e alguns miminhos para António, cada vez mais o distanciamento entre ambos se acentuava, tudo fazia para o ver feliz mas o facto de não lhe dar um filho fosse o motivo da sua infelicidade a mãe já lhe dizia isso, já se comentava na aldeia que ela era seca, erva daninha, como na aldeia se dizia de uma mulher infértil. António cada vez mais passava horas fora de casa, saia antes do nascer do sol e regressava com o sol posto, já fazia tempo que deixou de partilhar a cama com ela. Enquanto esperava a camioneta reparou num carro afastado o suficiente para não se descortinar quem lá estava dentro, apenas um vulto, nunca tinha visto tal carro por ali, e não passava despercebido pois só havia quatro carros na aldeia, o do professor, do dono da venda, do armazém, e do pároco, todos os restantes moradores para se deslocarem à vila, além da camioneta iam de mota, bicicleta ou carroça puxada por um burro. Chegou a camioneta, deixou de pensar no carro, a sua cabeça começou a imaginar o que faria para os anos, faria anos no mês seguinte, no início de Outubro, convidaria a mãe, a irmã mais velha, viúva, que vivia com uma filha adolescente, na aldeia mais próxima, e o cunhado irmão do marido e a mulher que moravam no campo. Compraria todos os ingredientes, que na aldeia não havia, para fazer um bolo como o da fotografia que viu na revista que comprava todos os meses para se inspirar, tirar ideias para a sua arte, a revista era alemã mas tinha todos os moldes que necessitava, e receitas que nunca poderia fazer porque não sabia nada de alemão, só sabia que era em alemão porque a senhora do quiosque lhe disse, numa delas viu um bolo e mesmo não sabendo os ingredientes tentaria fazer um com a cobertura que lhe pareceu maravilhosa.
Na vila entregou os trabalhos às clientes e foi almoçar com a amiga, quando saiu da casa da amiga, ainda não tinha saído da rua uma mão agarrou-lhe o braço, virou-se quase em pânico, e ficou em choque, Rui enlaçou-a e ali mesmo no passeio beijou-a, queria gritar para parar, queria soltar-se mas foi incapaz de o fazer, quase desfaleceu nos seus braços perdida de prazer, estava a trair António, mas se já nada havia entre eles, só porque era casada tinha perdido o direito de sentir estas emoções, o bom senso dizia-lhe para se soltar e ir embora, mas o corpo dizia-lhe para ficar e entregar-se.
Quando se libertou ou quando o beijo terminou deu por si a aceitar encontra-se com ele no moinho, no alto do monte oposto ao da capela, era um moinho abandonado, o moleiro morreu e ninguém voltou a pô-lo a funcionar. Até há pouco tempo vivia lá um mendigo, que de vez em quando descia à aldeia, recorrendo à caridade, em busca de comida e de alguma moeda, um dia desapareceu. Combinaram as tardes de sexta-feira, quando Rui vinha da vila para a herdade passar o fim-de semana, algo que deixava o pessoal da herdade, assim como o pai, curioso sobre essa mudança, raramente vinha à herdade e agora eram todos os fins-de semana, o pai ainda arriscou perguntar-lhe, e o que ouviu agradou-lhe, queria começar a tomar conhecimento do funcionamento da herdade, e ainda que por tempo ilimitado interagir com os trabalhadores da casa, é claro que não era verdade.
O tempo que passava na herdade era passado a cavalgar pelos campos, como sempre fazia anteriormente, mas o pai ia sempre dando-lhe o beneficio da dúvida.
Mariana aproveitava as tardes para costurar porque nas manhãs deslocava-se à casa da mãe para a ajudar nas tarefas domésticas e a tratar dos animais, visto que a mãe tinha um grave problema cardíaco. António nem sempre vinha almoçar, quando vinha comia rapidamente e voltava a sair até à noite.
Nessa sexta-feira quando voltou da casa da mãe nem almoçou, a ansiedade era tanta que quase lhe provocava apneia, o corpo reagia com um tremor que não conseguia controlar. Meados de Setembro, três da tarde, Mariana saiu à rua pelas traseira da casa, pela horta, tinha de caminhar por um campo aberto até ao atalho que subia pelo monte até ao moinho, era um atalho bem conhecido por ela, tinha o hábito de ir colher plantas aromáticas e medicinais, conhecia muito bem as propriedades e o uso, a avó tinha-lhe ensinado. Pelo atalho demorava um pouco mais do que pelo caminho de terra batida, mas era invisível da aldeia, a vegetação cobria-o completamente assim como as árvores que rodeavam o moinho e encobriam a porta da entrada e o anexo que o moleiro tinha construído para sua habitação. O espaço entre o início do atalho e a sua horta foi percorrido a correr o mais que podia, mas pensou que tinha sido um grande erro, era mais fácil caminhar, e até levar um cesto, assim se alguma vizinha a visse, ia apanhar ervas.
Chegou ao moinho, Rui não estava, mas o som dos cascos do cavalo anunciaram a sua chegada. Prendeu o cavalo a uma árvore e tomou-a nos braços, estava louco de desejo, enfeitiçado por aquela mulher, beijaram-se sem medo, como que embriagados, levou-a para o anexo, mas estava sujo, cheirava a podridão, foram para o moinho, e, ali, nuns sacos de serapilheira que estavam no chão, tornaram-se um, muito precipitado, muito rápido, a paixão que era tão intensa,  não podia esperar, devorou-os.
Vestiu-se e saiu a correr, estava louca! O que é que se passava com ela? Correu pelo o atalho, só quando chegou ao campo, no final do atalho, moderou o ritmo, respirou pela primeira vez, apanhou um molho de tomilho, e entrou na horta, em casa acendeu o lume na chaminé, aqueceu água, tinha de se lavar, libertar-se do cheiro que lhe ficou na pele, libertar-se de tudo o que tinha ficado em si. Dizia em surdina que não voltaria a acontecer, estava a trair António e sabia que essas traições se pagavam muitas vezes com a vida, tinham havido uns casos, ali pelos arredores, não se sentia amada pelo marido, já fazia tempo que não a a procurava na cama, e ultimamente dormia noutro quarto, aquele que seria para os filhos que não chegaram. Deixou a janta na mesa e foi-se deitar, era incapaz de estar junto de António, este nem sequer lhe perguntou se estava bem, se pudesse desaparecia, sentia-se tão infeliz, aquele casamento era apenas fachada.
No Domingo não foi à missa, era uma pecadora, uma adultera, não iria entrar na casa do Senhor, seria julgada para toda a eternidade, mas ao mesmo tempo que pensava assim outros pensamentos surgiam, no prazer, ainda que muito rápido, na luxuria que tinha sentido, a pele arrepiou-se, quase que sentia as mãos dele a percorre-lhe o corpo, a boca beijando-o. Queria afastar o pensamento pecaminoso, desistiu, era tão bom.
Foi à janela e Rui passava nesse momento a cavalo, por segundos abrandou, olhou-a e enviou-lhe um beijo, também tinha enlouquecido com certeza, não deveria fazer isso, e se alguém visse? Não iria voltar ao moinho.
Voltou! queria mesmo voltar, desejava-o tanto, quando chegou já Rui lá estava, tinha limpo o anexo, tinha mantas no chão, copos, uma garrafa de vinho e na chaminé a lenha ardia, criando um ambiente acolhedor, e foi levada ao céu ou ao inferno, dependedo dos anjos ou dos demónios presentes, talvez fossem demónios, tanto prazer só poderia ser demoníaco. Nunca tal tinha sentido, para António sexo era para procriar, queria filhos, e como não lhos deu, também lhe negou o sexo.
Chegou Outubro, primeira sexta-feira, fazia anos, vinte e seis e não foi ao moinho, fez almoço, fez o bolo ou pelo menos decorou-o como viu na revista, juntou a família mas o almoço já não lhe deu qualquer prazer, o pensamento fugia-lhe constantemente para Rui, para os momentos de êxtase que aquele homem lhe proporcionava.
Na sexta-feira seguinte, o tempo mostrava-se cinzento, com todo o aspecto de aguaceiros, como as tardes eram mais curtas foi mais cedo ao moinho, o ambiente cada vez era mais intimo, mais aconchegante, um verdadeiro ninho de amor, até velas acendeu, o vinho que lhe deitava no copo soltava-a de todas as inibições, despejava-lhe vinho sobre os seios, sobre o baixo ventre e languidamente, lentamente, lambia-o, quando finalmente a penetrava levava-a para outra dimensão.
E já não pensava em mais nada, todas as sextas-feiras era para subir ao moinho e ser amada. No final de Outubro, ao voltar do moinho, sentiu-se tonta, agoniada, chegou a casa e uma vizinha que estava na horta perguntou-lhe se estava a sentir-se mal, estava mal-encarada, quase teve uma paragem cardíaca, rapidamente arranjou um pretexto: durante a tarde tinha-se sentido enjoada, e saiu para colher artemísia, a vizinha ficou com um ponto de interrogação no rosto mas nada disse. Quanto à artemísia, na verdade, tinha de ir apanha-la, seria útil para outros fins, o período não apareceu, talvez devido ao intenso nervosismo, à enorme excitação, que andava a sentir.
Os enjoos não a largavam, a sorte era António mal lhe falar, saia cedo e voltava tarde, e assim nunca a via vomitar de manhã, a mãe dizia-lhe que tinha de ir ao doutor na vila, não gostava nada do ar macilento que tinha, perguntava-lhe porque tinha deixado de ir à missa, teve dificuldade de arranjar um pretexto, acabou por dizer que andava muito seriamente a pensar se Deus existia, deixando a mãe estarrecida. Ser adúltera, ter cometido um dos pecados capitais, daqueles que seria condenada ao inferno por toda a eternidade não a impedia de pensar em estar com Rui, a pele arrepiava-se de prazer de recordar os momentos juntos, como quando lhe espalhou no corpo creme de um bolo e lhe pediu para lhe fazer o mesmo.
Durante o mês de Novembro apenas foi ao moinho duas vezes porque o tempo que se fazia sentir já não permitia subir pelo atalho, porque chovia muito e porque estava sempre indisposta, mas quando ia esquecia-se de tudo, só ficava incomodada quando ele lhe dizia, acariciando-a, que os seios estavam maiores e que até gostava. 
Num Sábado, no inicio de Dezembro foi à venda, e a proprietária diz-lhe de chofre que estava mais roliça, estava para vir algum rebento, ficou pregada ao chão, respondeu que o frio a fazia comer demais, nessa tarde  tomou a mais difícil decisão da sua vida, foi à casa da parteira ou "fazedora de anjos", que morava afastada da aldeia e toda a gente a conhecia pelo uso das ervas milagrosas e por ajudar nos partos ou provocar abortos, mas isso era sigiloso, ficava entre ela e as clientes. Apalpou-lhe os seios e a barriga e perguntando-lhe pelo período  e foi o suficiente para lhe dar os parabéns, o António iria ficar contente. Regressou a casa, não sabia o que fazer, dizer ao marido que esperava um filho, impossível, só se fosse a virgem Maria, pois se não tinham sexo à meses quase um ano, pensou em seduzi-lo, levá-lo para a cama nem que fosse uma vez, e se ele não quisessem? Caso conseguisse teria de lhe dizer quando o filho nascesse que tinha nascido antes do tempo, e ai iria necessitar da cumplicidade da parteira. E se fosse até ao fim e o filho nascesse de olhos azuis, como explicaria isso, na família não havia olhos azuis, a cor dos olhos que a desgraçaram.
Ainda foi ao moinho, mas todo o fogo em que ardia quando Rui lhe tocava estava a extinguir-se, ainda tinha prazer mas já não queria sentir as mãos dele a explorar-lhe o corpo, a perceber a transformação, ainda que muito subtil, do corpo, os seios intumescidos e o baixo ventre mais saliente, ele notava e dizia-lhe a rir que tinha de deixar de comer bolos. Depois do momento passado já só queria ir embora, ir para casa chorar.
Tinha de lhe dizer, estava a enlouquecer, a desesperar, numa tarde muito desagradável meteu-se a caminho, Rui já lá estava, com o lume na chaminé aceso, beijou-a lentamente despertando nela desejo, fê-lo parar tinha de falar com ele, Rui ficou alarmado, vinha aí algo que não gostaria de ouvir, diz-lhe que está grávida. Grávida como? Não lhe tinha dito que não podia engravidar, que era estéril, que não necessitava de tomar cuidado. Não seria do marido? não era, não tinha relações há um ano com o marido. Desatou num choro histérico, e ele cobardemente só queria fugir dali, voltar à vila à sua vida de mulherengo, porque era isso mesmo que era, ela é que não sabia, nos intervalos havia sempre uma ou outra para ocupar o seu lugar. Ainda lhe disse que tentasse levar o marido para a cama, depois anunciar a gravidez, e depois diria que o filho era precoce e ainda lhe disse se por azar o filho nascesse de olhos azuis ela diria que na família tinha havido gente de olhos azuis, por exemplo um bisavô. Ele desconhecia que toda a aldeia conhecia os seus antecedentes, eram todos dali.
O que é que ele poderia fazer, ela era casada, não poderia assumir esse filho, provavelmente o marido dava-lhe um tiro e a ela também, vingava a sua honra.
Ela disse-lhe que ia tentar levar o marido para a cama, depois logo se veria, muito calculista disse-lhe que ainda o desejava, ainda queria sentir todo o prazer que despertava nela, pediu-lhe para se encontrarem mais umas vezes, até a barriga se notar, e ele disse-lhe que sim que ansiava por isso, quando não estava com ela só pensava nesses momentos.
Quando se voltaram a encontrar Rui já não a enlaçou nem beijou arrebatadoramente, quase a deixando sem fôlego, tinha o lume aceso apenas porque estava frio, nem vinho, nem bolos, ela  sentiu esse afastamento, pensou que não haveria todo o anterior ritual e levou uma garrafa de vinho, uma que tinha sobrado da sua festa de anos, que tinha comprado no arraial da romaria da Senhora do Monte, a quem não pediu auxílio.
Abraçou-o e beijou-o ele pouco correspondia, não teve dúvida já não lhe interessava, era o final. Foi-se despindo levando-o a despir-se e o amor que fizeram já não fez tremer o monte, brilhar as estrelas, estalar fogo de artifício, nem fazê-los ver arcos- iris Em dois copos despejou vinho da garrafa que trazia já aberta, embora tivesse a rolha colocada, e sinuosa como uma serpente, levou-o a beber, enroscando-se nele, no chão, sobre as mantas, onde tantas vezes se entregou perdida de desejo, agora era apenas uma actriz a encenar o maior papel da sua vida. Rui começou a sentir dificuldade em respirar, o corpo começou a entrar em convulsões, seguido de vómitos, depois retesou-se em agonia e ainda a olhou, ela apenas sorria, ele deu o último suspiro. Ela muito lentamente deitou-se sobre o corpo dele e pegando no copo com vinho bebeu-o até à última gota, encontrar-se-iam no inferno. Ainda tentou beber o que restava na garrafa mas foi incapaz, sentiu tudo o que Rui sentiu até os olhos se fecharem para sempre. António, à noite, estranhou a ausência de Mariana, mas como estava uma noite de meter medo, tenebrosa, pensou que poderia ter ficado em casa da mãe.
Por casualidade ou obra do destino o mendigo voltou ao moinho, no outro dia iria até à aldeia para conseguir alguma coisa para comer, alojamento pelo menos tinha garantido, quando chegou à porta assustou-se viu um brilho que passava pelas frinchas, pensou que estaria lá outro zé ninguém ou seria alguma alma penada, riu-se não acreditava nessa coisas ou melhor alma penada era ele. Empurrou a porta e viu lume na chaminé, quem quer que ali estivesse não lhe ia negar guarida nessa noite, parecia o fim do mundo. quando entrou viu algo mais no chão, deixou-lhe todos os pelos do corpo em pé, dois corpos nus, numa posição que a ele lhe parecia estarem a foder, não conhecia outra palavra. Pensou em se ir embora, fechar a porta, não iriam dar por ele, mas estavam tão imóveis, parecia que dormiam, mas quem é que dorme assim? Aproximou-se, havia dois copos vazios e uma garrafa com, talvez, um resto de vinho estariam bêbedos e adormeceram assim? Aproximou-se mais e tentou tocar nela, e horrorizado percebeu que estava morta, e ele também. Saiu dali aos tropeções pelo atalho abaixo, que estava em estado deplorável devido à chuva, até à aldeia onde no adro da igreja gritou que tinha havido uma desgraça no moinho, um homem que ele não conhecia e a menina Mariana que conhecia muito bem, dava-lhe sempre esmola, fosse comida ,fosse alguma moeda, era muito gentil, estavam mortos. A população começou a sair à rua, tinha parado de chover, mas fazia frio de rachar, alguns tremiam, tremeram muito mais quando ouviram o mendigo, chamaram António, e outro alguém chamou a mãe. Alguém foi à herdade para puder telefonar para a vila para vir a guarda, se calhar foram assassinados, mas porque estavam juntos? É claro que por todas as cabeças passou a ideia de serem amantes, porque estavam os dois no moinho? mas como? nunca ninguém tinha visto nada. Alguém que tinha ido à herdade trouxe o pai de Rui, vinha aguardar a chegada da guarda, mal sabia o que o esperava, o mendigo não conhecia o filho. Antes de sair para a aldeia telefonou ao seu amigo, doutor na vila, que viesse até á aldeia. A guarda chegou e toda a gente a seguiu, António tinha partido para o moinho antes de todos os outros, foi pelo atalho. Quando a guarda chegou e toda a população, foram pelo caminho de terrra batida, que estava em melhor estado que o atalho, esta impediu quem quer que fosse de entrar, viram António sair lívido, de uma palidez de cadáver, sem conseguir articular palavra, chamou a guarda e esta por sua vez chamou o pai de Rui, quando este demorou a sair o amigo doutor fez sinal ao outro elemento da guarda se podia entrar, entrou e deu com um cenário macabro, os cadáveres, o pai do Rui desfalecido e António que parecia sonâmbulo. Cá fora todos queriam saber o que se passava lá dentro, um guarda foi à vila, trazer os bombeiros para remover os corpos, enquanto outro se colocava em frente à porta, não permitindo que ninguém entrasse. Chegaram os bombeiros, entraram, e os corpos foram envolvidos em grandes panos e colocados conjuntamente numa padiola, o "rigor mortis" já se fazia sentir, dali seguiriam para a morgue para se fazer autopsia. A população estava em choque, ninguém ia para casa e no largo da capela todos diziam que eram amantes, isso era supostamente real. 
A mãe de Mariana foi levada à aldeia onde morava a filha mais velha e a sobrinha. O pai de Rui foi levado para a herdade pelo doutor amigo, e António desapareceu, talvez fosse para o seu terreno.
Quando os corpos foram libertados, o de Mariana foi a enterrar na aldeia, António pagou todas as despesas mas não compareceu, a mãe por motivos de saúde também não, apenas a sobrinha e algumas vizinhas que gostavam muito dela, Rui foi para o cemitério da vila, para o jazigo da família. Nenhum levou padre, o suicídio era pecado mortal, daqueles sem perdão.
A mãe de Mariana ficou na casa da filha mais velha, pouco tempo depois o coração atraiçoou-a, pediu para não a sepultarem junto da filha, depois do que se passou deixou de ser sua filha. O pai de Rui ficou na herdade, sem familiares, contactou de imediato um sobrinho que tinha na capital dando-lhe a infeliz notícia da morte do filho, e pedindo-lhe que viesse o mais rápido possível, sentia que não lhe restava muito tempo, visto ser o único herdeiro da sua vasta fortuna, queria que ficasse a par de tudo o que se relacionava com a herdade e os seus trabalhadores, também queria a garantia que iria conservar a herdade, que nunca a venderia e a passaria aos seus herdeiros. Um dia um violento enfarte levou-o.
António tinha pegado no cão, em algumas roupas e mantimentos, e desapareceu, todos sabiam onde estava mas ninguém ousava entrar em contacto com ele. Quase dois meses passados apareceu na aldeia, dirigiu-se à venda, não falou a ninguém, expecto à dona da venda, nem ninguém lhe falou, comprou o que necessitava e foi-se embora, depois esteve meses sem aparecer, até que alguém por compaixão foi procura-lo , e deparou-se com um cadáver, aliás dois, tinha dado um tiro no cão e outro em si.
 Dizia-se na aldeia que se tinham envenenado, não sabiam qual o veneno, o doutor amigo do pai de Rui soube, foi cicuta misturada no vinho, tinha discretamente apanhado a garrafa e levou-a consigo, mandando analisar o resto do conteúdo, e sabia também que Mariana estava grávida, depois da autopsia soube, não disse a ninguém. Também a parteira sabia que se tinham envenenado, quando Mariana a procurou deu por falta de um molho de cicuta quando esta se foi embora, Mariana tinha conhecimento da utilização das ervas, sabia os efeitos que faziam. Se Mariana envenenou Rui e envenenou-se só poderia ser por estar grávida dele, quis poupar-se ao sofrimento, à vergonha se estivesse viva. 
Tanto ela, a parteira, como o doutor levaram o segredo para o túmulo, e o acontecimento foi-se esbatendo com o tempo, este foi permitindo que outros pormenores fossem acrescentados até a história serem histórias, por fim só se contava que tinham morrido abraçados no moinho, morreram por amor. 
Eu depois de ouvir apenas o final decidi explorar a história criando um enredo digno de uma novela, não faço a mais pálida ideia do que se passou, toda a história saiu da minha imaginação, só o final  foi o que aconteceu verdadeiramente.