Translate

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Reerguer

Todos os dias, era já um ritual, a discussão começava por qualquer motivo, por mais fútil que fosse, era porque a roupa estava mal engomada, era porque a comida que fazia era uma porcaria, porque lhe gastava o dinheiro todo, ele que trabalhava no duro, chamava-lhe inútil, que não tinha jeito para nada, ela tentava argumentar dizendo que andava muito cansada, não queria discutir, queria conversar, falar sobre o motivo que originou toda aquela violência verbal. Ele dava por terminada a conversa, se a isso se poderia chamar conversa, e saía de casa batendo com a porta, de tal modo que não faltaria muito tempo para que esta se desconjuntasse.
Mariana ficava destroçada, tentava encontrar explicações para tanta mudança no marido, era verdade que nunca foi o companheiro, o amigo, o amante, o cúmplice que sonhou, era apenas o marido, fazia o seu papel, chegava a casa cansado, no início de casados ainda lhe dava um beijo, depois foi-se esquecendo, limitava-se a dizer boa noite, era quase sempre à noite que se voltavam a ver depois de saírem de manhã para os respetivos empregos. Ainda assim nos fins de semana saiam os dois, iam até à pastelaria mais afastada do bairro, aproveitando faziam uma caminhada, para tomarem o pequeno almoço, por vezes também iam ao cinema sábado à noite.
Quando ficou grávida já há muito tempo que Mariana sentia o afastamento do homem com que casou mas continuava a desculpá-lo. A filha nasceu, e a sua vida virou inferno, andava numa roda viva, deixava a filha com a mãe, ia trabalhar, regressava para ir buscar a filha, cuidar dela e dos afazeres domésticos, ficava extenuada, o marida nada fazia até aí mas que tinha sempre a primazia sentiu-se negligenciado, começou a lastimar-se, no início eram apenas queixas mas rapidamente passaram a insultos, ainda se esforçou  dizendo-lhe que se ele a ajudasse, por mais pequena que fosse a ajuda, as coisas iriam melhorar com certeza, também andava cansada, com noites mal dormidas, ah! quanto às noites, ele dormia invariavelmente no sofá da sala porque a filha não o deixava dormir, nas noites que ficava na cama de casal era apenas pelo sexo, apenas uns gestos mecânicos para obter o seu prazer, ela... queria lá saber dela!
Ela submetia-se, era a sua "obrigação", com o pensamento noutro lado qualquer, quando terminava o único suspiro que dava era de alívio.
Desejava profundamente que ele se esquecesse dela mas ao mesmo tempo sentia pavor de o perder para qualquer "galdéria" ou que fosse "às meninas", aí o pavor aumentava, a SIDA andava por aí a fazer vítimas.
Tornou-se uma mulher amargurada, deprimida, com a auto estima completamente na "lama", que se auto-mutilava, batendo com a cabeça nas paredes, arrancava o cabelo e dava brutais bofetadas a si própria, insultava-se, como se merecedora de tais "elogios".
Deixou de ter sexo com ela, soube seguramente que tinha uma amante, à qual ficou grata por a ter libertado da "obrigação", o dinheiro que habitualmente lhe entregava para as despesas da casa foi reduzido, apesar das dificuldades ainda assim a vida tornou-se muito mais suportável mas continuava a sentir-se um farrapo, incapaz de tomar decisões para mudar a sua vida.
Quando a filha terminou o secundário, o marido que já andava com graves problemas de saúde, que todos sabiam ser fatal, foi hospitalizado, Mariana desempenhou o seu papel de esposa "devota", diariamente era presente naquele hospital, quando o marido passou para os cuidados paliativos sentiu que tudo perdia o sentido, tão enraizado tinha em si a ideia do sofrimento.
Ainda na fase inicial da doença foi muitas vezes ameaçada de morte, se julgava que iria ser uma "viúva alegre" desenganasse, porque ainda a matava primeiro.
Quando um dia ao chegar ao hospital recebe a notícia que o marido tinha falecido ficou quase chocada com o despreendimento, a indiferença que sentiu perante tal notícia, serenamente começou a tratar do expediente seguinte, informar familiares e amigos e tratar do funeral.
No dia do funeral Mariana, num arrojo de coragem, quando o caixão desceu para a cova, espontaneamente, sem se preocupar com os presentes deu o "grito do Ipiranga", em voz alta disse: - Até que enfim, sou uma mulher livre!
Muito calma deu a mão à filha e voltando as costas saiu do cemitério dizendo para si própria que nunca mais iria, enquanto viva, àquele local e nem depois de morta. 
Procurou ajuda e lentamente começou a reerguer-se começou a valorizar o que tinha construído, a apreciar as coisas boas que a vida lhe oferecia, no emprego foi promovida, com o ordenado aumentado, uns anos depois a filha deu-lhe dois netos lindos, tem uma boa relação com o companheiro da filha, e sente-se uma sortuda por ter uma família maravilhosa, que ama e pela qual sabe que é amada. Tem um leque de amigos com os quais partilha viagens, tertúlias, e lhe proporcionam momentos inesquecíveis, começou a frequentar a universidade com a finalidade de se formar em psicologia, diz que quer entender a mente perversa dos seres humanos, quando na brincadeira lhe dizem que deveria arranjar um namorado responde a rir que já teve a sua dose, tornava-se mais depressa lésbica.

Sem comentários:

Enviar um comentário