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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

A pecadora

Estava internada, tinha sido submetida a uma delicada e complicada cirurgia cardíaca. Fazia anos nesse dia, sessenta e quatro anos, mas parecia muito mais nova. Tinha uma pele de pêssego, com rugas muito suaves que apenas acentuavam a doçura do rosto.

Naquele dia, momentos, segundos, antes das visitas entrarem, estava junto dela a desejar-lhe os parabéns, quando sai entrou um homem bem parecido, aliás posso dizer elegante e bonito. Nesse dia já não a vi, no dia seguinte, quando entrei de serviço, dirigi-me à sua cama para lhe prestar os respectivos cuidados, com um sorriso maroto perguntou-me se eu tinha visto o homem que ontem a visitara, disse-lhe que sim, depois de um momento de silêncio disse muito baixinho que era padre. Fiquei em silêncio, pensei que o seu orientador espiritual a tinha vindo visitar. Riu-se baixinho, e mais baixo ainda dizia que era uma pecadora.

De imediato deduzi que mantinha um relacionamento amoroso com o padre, esbocei um sorriso, apercebeu-se da cumplicidade, e muito à vontade começou a contar uma "história" que durava há quarenta anos.

Num domingo, numa manhã primaveril, a gente da aldeia aguardava o novo pároco, diziam que era um jovem acabado de sair do seminário. No largo da capela as andorinhas num frenesim esvoaçavam sobre as copas das amoreiras que guarneciam o espaço, um carro parou, e dele saiu um jovem, talvez vinte e dois anos , coisa menos coisa, com a voz quase sumida saudou a população, desejando-lhe um bom-dia.

Aquela gente quis toda ela entrar na capela, esta pequena demais, nesse dia tornou-se ainda mais pequena, todos queriam satisfazer a curiosidade, a maioria acabou por ficar no exterior. Também foi, não era muito religiosa, foi mesmo por curiosidade. Desde o primeiro instante simpatizou com ele, mas foi voz corrente quando ouviu os comentários. Não tinha o hábito de ir todos os domingos à missa, passou a ir. O marido, ah! é verdade, era casada, estranhou, e dizia, a brincar, que o novo padre estava a dar a volta à cabeça do mulherio. Se ele soubesse o que se passava na cabeça dela, quase apostava que lhe dava um tiro.

Todos os domingos, aos poucos começou a sentar-se nos bancos da frente, ali ficava a afundar-se no mar daqueles olhos, muitas vezes tinha a sensação de ficar em êxtase, e esforçava-se para repelir as emoções que de si se apoderavam. Sentia-se culpada, traia o marido, mesmo em pensamento não deixava de ser traição. Andava tresloucada, se pecava tinha de se penitenciar, iria confessar-se, iria dizer ao padre que cometia o pecado da cobiça. Foi, e no momento, num impulso, disse que era ele que cobiçava. O padre manteve-se em silêncio, depois saiu antes dela.

Desde esse dia, já tinha percebido que no olhar dele havia o mesmo desejo, o olhar tornou-se intenso e quase suplicante. Esse amor platónico durou cinco anos, era uma condenação ao inferno mas impossível de refrear. O marido infelizmente, nunca lhe desejou a morte, morreu de uma doença fulminante, deixou-a viúva, e sem filhos.

Era costureira, ganhava para se sustentar, além disso os pais, já falecidos, tinham-lhe deixado umas terras, ponderou seriamente em as vender e ir para a cidade, ai teria mais oportunidades na profissão, e sairia daquele meio limitado, principalmente para os voos mais altos que desejava iniciar. Antes de tomar qualquer decisão falou com ele, claro que se falavam, cumprimentavam-se, e ela não perdia a oportunidade de se "confessar", e ele de lhe dar a "absolvição", ria, e dizia que era no confessionário que se encontravam, nunca iam mais longe do que palavras carregadas de emoção, por momentos calou-se, depois disse que era mentira, por uma vez foi mais que palavras, beijaram-se através da rede que os separava.

Disse-lhe que ia vender as terras e comprar uma casa na cidade, nada a prendia ali, até talvez vendesse a casa. Ele disse-lhe que ia tentar ser colocado numa paróquia, se não na cidade, pelo menos muito próxima. Ainda demorou um tempo até os seus sonhos se concretizarem, a "gentinha" da aldeia perguntava-lhe porque se ia embora, respondia-lhe que sempre quis viver numa cidade, tinha necessidade de experimentar outras vivências, outras oportunidades, e só na cidade isso aconteceria, e não estava a mentir.

Comprou a casa, comprou uma vivenda nos arredores da cidade, rodeada por um jardim que lhe garantia privacidade, nunca tentou relacionar-se com os poucos vizinhos, que também eram muito discretos, fez algumas amizades, poucas sabiam desse relacionamento, e nunca a julgaram.

Continuou a trabalhar como costureira, o homem que amava acabou por ser colocado numa freguesia muito próxima, e deixaram o amor florescer livremente, embora aprisionado em quatro paredes.


Quando teve alta disse-me que eu tinha um "dom", pois sentiu que me tinha de contar esse segredo.
A "história" é verídica, deixei apenas a imaginação voar um pouco, e retoquei-a com umas "pinceladas" de romantismo. Hoje lembrei-me desta "história" e acrescento que sou completamente contra o celibato imposto, é "anti natura". Deveria ser uma opção pessoal, nunca uma imposição, assim este amor nunca seria proibido, proibido aos olhos humanos é claro, pois todos estes dogmas foram criados pelo Homem.

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