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domingo, 18 de abril de 2010

Fim de cena. Descer do pano

Conheciam-se aproximadamente há cinco meses, trabalhavam ambos na mesma área, cirurgia, ela auxiliar, ele enfermeiro. Nos dias em que estavam de serviço, trabalhavam em equipa, o contacto era meramente profissional.
Quando o conheceu, brincava com as amigas, dizia que tinha conhecido o homem da sua vida, o homem dos seus sonhos. Nada se passava que a levasse a pensar que ele teria algum interesse nela, pelo contrário parecia-lhe autoritário, distante e muito profissional. Não lhe passava pela cabeça seduzi-lo, o símbolo que usava no anelar da mão esquerda, era um sinal de proibição.
Mas Eros quer lá saber dessas tolices, dessas proibições, quando decide fazer das suas, é mesmo infantil o sacaninha, nada o impede, como lhe dá prazer ver os humanos a comportarem-se ridiculamente, tocou-lhe com a flecha no coração e ela viu-se devorada pela paixão, pelo desejo, ou mais comedidamente pelo amor.
As pessoas apaixonadas desenvolvem uns radares sensoriais, que captam os sinais emitidos pelos que estão na mesma frequência, começou por lhes dar atenção, foi decifrando-os nos olhares, nos toques das mãos, no aproximar, no roçar dos corpos, sempre que tinha pretextos para o fazer, para lhe chamar a atenção, ensiná-la e dar-lhe explicações para melhorar o desempenho das suas funções.
Trabalharam juntos na véspera de Natal, quando acabou o turno, ela poucas vezes o viu, a noite foi calma, esteve quase sempre na sala dos enfermeiros, ele chamou-a, foi, as pernas tremiam, já era habitual ser tomada por tal lassidão e tremor sempre que ele a chamava. Entrou na sala, ele por momentos nada disse, depois estendeu-lhe a mão, quase num murmúrio deseja-lhe um bom Natal, ela entrega-lhe a sua, se ele mais alguma coisa ia acrescentar, esqueceu-se, puxou-a para si e as bocas colaram-se num frenesim.
Quando se separaram, ele atordoado pediu-lhe desculpa e saiu precipitadamente da sala, ela tentou recompor-se, o estômago estava todo enrolado, parecia que tinha um ouriço dentro dele, o coração batia em taquicardia e a cabeça era um enorme buraco negro.
Esqueceu-se, teve de voltar atrás, a colega já tinha saído, e deixar o relatório do turno para as colegas do turno seguinte. Elas quando a viram acharam-na com mau aspecto, perguntaram-lhe se não estava bem, respondeu-lhe que estava melhor, tinha estado ligeiramente indisposta, alguma coisa que comeu. Como as mulheres são mentirosas!
Três dias depois do Natal trabalhavam juntos, tiveram a certeza que nada iria travar aquela paixão, em todos os momentos os olhos se procuravam, as mãos tocavam-se, os corpos roçavam-se, em qualquer canto isolado beijos eram trocados, aqui o profissionalismo não desempenhava qualquer papel.
Uns dias depois, no final do turno, ele convidou-a para irem beber café, não ali, no hospital, lá fora, na cidade, num café qualquer, ela esperou por ele, chovia torrencialmente, ela arriscou, atreveu-se e convidou-o para irem beber café ao seu minúsculo apartamento, ele hesitou, depois já não havia retorno, disse que sim.
E depois...a partir daqui não vejo necessidade de contar o que aconteceu, embora ela diga que não aconteceu nada, sou eu que vejo muitos filmes, toda a gente sabe o que acontece quando se aceita beber café no apartamento de alguém por quem nos sentimos irremediavelmente atraídos e vice versa.
Continuando...a história poderia terminar no: foram felizes para sempre, não sei se terminaria assim, visto haver uma terceira personagem que ainda não tinha conhecimento da cena, não se tendo portanto manifestado, infelizmente nunca o chegou a fazer, o destino, o karma, a sina, o fado, ou o que quer que lhe queiram chamar, se existe, não lhe deu essa oportunidade. A vida é mesmo traiçoeira, porra!
Na tarde cinzenta, quase negra, triste e chuvosa ambas o sepultaram, uma chorava copiosa e compulsivamente, a outra chorava também, mais contida, ainda bem que chovia, nada a cobria, assim ninguém via, ninguém se apercebia.




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