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sexta-feira, 14 de agosto de 2009
Desilusão
Quando partiu o sol brilhava em todo o seu esplendor, iluminava o país pequenino que deixava junto ao mar, que saudades já tinha do seu Portugal. Levava-o cravado no coração quando partiu para outro país onde iria ganhar para o pão de cada dia e, com um pouco de sorte, também para amealhar, para um dia arriscar voos mais altos. Sozinha partiu para França, não levava mala de cartão, mas a que levava também não lhe ficava atrás, não era mesmo "Louis Viutton". A língua, pouco ou nada sabia, o que aprendeu nos dois anos do ciclo preparatório de pouco ou nada lhe valeram, era uma língua de trapos, não entendia nada.
O trabalho era árduo, colher morangos, pêssegos, maças, deixava-a no fim da jorna de rastos, não havia tempo para mais nada. Quando lhe fizeram esta proposta aceitou, porque entre trabalhar em Portugal como empregada doméstica a ganhar um ordenado insignificante ou colher fruta em França, este último recompensava, ainda que fosse temporário. Apenas falava com os conterrâneos, até o capataz era português, portanto de francês, nicles. Ao fim do segundo contrato o capataz perguntou-lhe se não queria mudar de profissão, e esta com mais classe, tinha uma proposta para lhe fazer: trabalhar como doméstica na casa de um casal francês, precisavam urgentemente de uma para a manutenção da sua moradia. Deu-lhe um dia para pensar, era pegar ou largar, havia mais gente interessada, mas simpatizou com ela e quis dar-lhe a oportunidade. No mesmo dia deu-lhe a resposta, decidiu aceitar, em Portugal apenas deixava a mãe mas esta não precisava dela, era uma mulher ainda autónoma.
Começou a trabalhar numa moradia de luxo, nunca os seus olhos tinham visto tal, competia-lhe fazer as limpezas mais profundas, isto é, falando literalmente, limpar a merda mais difícil, o que exigia mais esforço físico, mas que importava, o ordenado justificava bem o esforço. O casal tinha sido solicito e atencioso, tinham-se deslocado com ela aos locais necessários para tratar de toda a burocracia e formalidades associada à sua permanência no país, que iria ser por tempo indeterminado. Ficou com um minúsculo quarto num anexo ao fundo do jardim, não se importou, ali também estava alojado o jardineiro, homem de trinta e tal anos, já ali estava à dois anos, era português, o Álvaro. Os restantes empregados, uma cozinheira/copeira, a Valérie e uma empregada de quartos, a Mónique, ambas francesas, completavam o pessoal e tinham honras de alojamento na casa principal.
Os patrões já de meia-idade, pouco tempo estavam em casa, viajavam imenso, tinham dois filhos adultos que não viviam com eles, estando portanto a maior parte do tempo a casa por conta dos empregados.
Enviava para à mãe um determinado valor para esta juntar ao seu ordenado, o restante depositava-o numa conta na C.G. D. para um dia, quando voltasse, comprar uma casa. Tinha vinte e um ano, um dia de folga, ao Domingo, e nunca saia daquela casa, falava apenas com o jardineiro quando necessário, este era muito reservado e esquivo, limitava-se, na maioria das vezes, a dizer-lhe um seco bom-dia.
Aprender francês estava a ficar difícil, tentou aproximar-se das empregadas francesas, a cozinheira ignorou-a, a criada de quartos foi mais simpática, esforçava-se para que ela percebesse o que dizia, mas era uma língua confusa, acabavam por rir ambas, esse foi o factor que permitiu que uma boa amizade se estabelecesse entre ambas. Mónique explicava-lhe por mímica, apontando, dizendo e escrevendo numa folha de papel o nome dos objectos, o mais complicado era pronunciar os verbos e aplicá-los, isso por vezes dava aso a momentos hilariantes, quando Marie, era o seu nome em francês, tentava repetir o que Mónique escrevia.
Mas era inteligente (continua a ser) e diligente, quase sem se aperceber formava frases completas e bem pronunciadas. Percebia o que a cozinheira dizia quando em voz alta reclamava, atarefada, na cozinha, e mais tarde os palavrões que ouvia vindos do quarto da dita, situado no rés-do-chão. Uma noite, o sono recusava aparecer, veio para o jardim, e andou por lá às voltas para ver se o convencia, quando ouviu passos apressados, estava oculta atrás de uma sebe, que se dirigiam para uma janela que estava aberta, que sabia ser a do quarto da cozinheira e um homem num salto entrou por ela. Riu-se, o português, o jardineiro tirava a "barriga da miséria" com a franciú e em simultâneo "limpava-lhe a chaminé", nessa noite e em outras que passeava no jardim, ouvia nitidamente os sons de deboche e entendia perfeitamente os palavrões, que, diga-se a verdade, ditos em francês até soam bem, oh! l'amour. Isto tudo se passava na ausência dos patrões, nesses dias naquela casa só se fazia o básico, a cozinheira dormia grandes sestas, porque a noite era para a farra. Marie e Mónique aproveitavam para ir até à vila, que distava uns cinco quilómetros, para passear, fazer compras e talvez arranjar um namorado, eram ambas muito bonitas, Marie, sabia eu, Monique, porque Marie quando me escrevia o dizia. Dois anos depois comprou uma bicicleta, com a finalidade de estudar na vila, à noite, se bem o pensou, melhor o fez, o conhecimento que tinha da língua permitia-lhe até a um certo ponto dominar as matérias, depois logo se veria, mas estava confiante , o seu anjo, o anjo de Portugal haveria de a ajudar. Durante cinco anos dedicou-se ao máximo, noites sem dormir para poder estudar, porque muitas vezes era impossível fazê-lo de dia, nunca chumbou, quando terminou concorreu para um escritório na vila, era de uma empresa de exportações, conseguiu o lugar. Foi lá que o conheceu, italiano, charmoso, sedutor e muito bonito, era motorista de longo curso. Quase de imediato os piropos, elogios, galanteios, e todo o arsenal que os homens sabem usar, quando pretendem alcançar os seus objectivos, sabemos muito bem quais são, começaram a subir-lhe à cabeça, deu por si perdidamente apaixonada pelo Salvatore. Aquela língua era doce como o mel, feiticeira, atraia-a, começou a fraquejar e como sonâmbula deixou-se cair na armadilha. Pois foi, cumpriu-se um ritual que existe desde Adão e Eva. Como bons latinos legalizaram a união, casaram pelo civil, Marie ainda vivia a lua-de-mel e já ele a sacaneava, com muita arte e talento, levou-a a passar as poupanças para uma conta comum, que ia lapidando muito metodicamente. Quando ela lhe pedia explicações tinha sempre argumentos que ela não conseguia debaldar: pagamentos na oficina, pois o carro estava sempre a necessitar de manutenção, aliás, andava a pensar trocá-lo, aquele só lhe dava chatices; porque precisava de comprar roupas de marca, porque, enfim, gostava de se vestir bem, ela deveria orgulhar-se dele, tomara muitas, dizia ele, ter um marido assim , "bonno e molto bello" e que a amava muito.
Um dia toda a poupança tão arduamente alcançada, para a sonhada casa em Portugal, foi-se, levantou-a, nem "una moneta" lhe deixou, "o figlio di una gran putana". Marie entrou em desespero, teria voltado para Itália? Mas para onde? Sabia que era da Calábria, mas de onde? Nem se recordava do nome da terra, foi ver na certidão de casamento mas pensou que ele, logicamente, não iria para lá, pois ela iria lá procurá-lo. No escritório tentou obter informações, sem denunciar a sua situação, teve uma surpresa, tinha-se despedido, tinha-o feito, com aviso prévio, ela não sabia?
Dois anos depois Marie voltou a Portugal, no dia em que chegou nem viu o sol radioso que a saudava, nem sentiu o mar que tanto amava, a mãe tinha falecido, apenas veio tratar do funeral e regressou. Continuava casada com um italiano a quem desejava a morte, se fosse possível, ser ela a proporcionar-lhe esse encontro. O dinheiro que ia poupando não o depositava no banco nem o investia, não fosse o "merdas" lhe ter acesso. Entretanto tentou anular o casamento, ainda bem que não casou pela igreja, a Santa Madre Igreja, Católica, Apostólica, Romana, nunca lhe faria tal caridade. Conseguiu, pois afinal estava casada com um fantasma. Nunca mais regressou a Portugal. Os relacionamentos amorosos limitam-se a encontros ocasionais, beber uns "copos" e muito sexo, no dia seguinte nem sabia de onde os conhecia, que desaparecessem! Diz que enquanto tiver juízo mais nenhum "figlio di una gran putana" fará parte da sua vida, teve a sua dose. A sua frase favorita para descrever os homens: "os homens são como as fraldas descartáveis, usam-se e deitam-se fora", é na sua opinião uma citação filosófica, e lamenta que não passe a fazer parte dos manuais de filosofia, ainda que não se saiba quem é a grande filósofa da actualidade que a citou pela primeira vez e se criou mais pensamentos com tanta lógica.
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