"A saudade é o sitio para onde a alma teima em regressar". Já não sei de quem é esta frase, nem se está correta, mas é indiferente. Esta introdução serve para definir como hoje me sinto, é verdade com saudades, saudades do passado, que embora muitos acontecimentos nele vividos me tenham marcado negativamente, mas já resolvidos, outros houve que enquanto a memória não falhar terei grande prazer de recordar. O que originou este texto foi que por fração de segundo veio à minha memória uma pessoa que fez parte do meu passado, e da qual guardo boas recordações, chamava-se Irene Franco Quintal, conhecia-a porque era amiga dos meus pais, mas posteriormente, depois da morte do meu pai, aproximamo-nos mais, o que contribuiu para nos conhecermos melhor. Era uma sexagenária e eu uma jovem, o que não impediu que tivéssemos longas conversas bastante interessantes.
Foi uma mulher com "garra" uma mulher que quis mudar a sociedade, mudança essa que para ela passava pela politica, era anarquista, uma libertária que, apesar de nossa amiga, não se inibia de nos criticar pela forma como aceitávamos ser governados, e já estava instaurada a democracia, ou pensávamos que sim, já se tinha dado a famosa revolução dos cravos, pelo menos havia liberdade para reclamar e comentar as injustiças do governo, coisa que durante a ditadura só os audaciosos, corajosos, os que arriscavam a própria vida tinham coragem de fazer, ela foi uma delas. Nascida no seio de uma família operária começou bem cedo a viver todo esse fervilhar de inquietação que os pais levavam para casa, numa sociedade fortemente amordaçada pelo fascismo (salazarismo) onde o povo era sobrecarregado com demasiadas horas de trabalho e mal remuneradas, sem as mínimas condições dignas de um ser humano, tanto os trabalhadores rurais como os operários começaram a manifestarem-se, o que não agradava ao governo, originando denúncias, perseguições, e prisões de todos os que levantavam a voz contra essa opressão e tirania. Os pais de Irene eram partidários do Anarquismo, era ilegal, mas existia, portanto os seus membros eram perseguidos e levados para a prisão, o seu pai foi várias vezes preso. Irene casou em segundas núpcias com o famoso libertário Francisco Nóbrega Quintal Júnior e a sua ligação ao Anarquismo aumentou, pois esse homem desde muito jovem, quinze anos, tomou conhecimento do Anarquismo através de um panfleto de propaganda que o seu pai trouxera para casa, e foi ao longo de toda a sua vida um fervoroso defensor desta causa, e pela qual foi muitas vezes perseguido e preso. Quando conheci Irene já era viúva, mas quase se pode dizer que conhecia aquele homem pelas "histórias" que nos contava
As recordações vão surgindo, e muitas outras "histórias" foram vividas conjuntamente. Já com o meu companheiro, que tinha (tem) simpatia pelo Anarquismo, a amizade tornou-se mais intima partilhando almoços na sede em Lisboa, onde aprendíamos tudo o que estivesse relacionado com o Anarquismo, os almoços na casa da minha mãe, as viagens para minha terra para participar dos casamentos dos meus familiares, os piqueniques onde havia sempre uma palestra ou debate com um grupo de anarquistas.
Gostava verdadeiramente de a ouvir contar de quando viveu em Moçambique, país que adorava, e do qual falava exprimindo a saudade, gostava quando falava nas viagens de machimbombo, dos amigos que por lá tinha deixado, muitos deles não voltaria a ver.
Embora tivesse enteados, filhos do segundo marido, vivia sozinha em Lisboa, por vezes ainda íamos até lá, para ela, devido à idade, tornou-se problemático deslocar-se a Sesimbra, o contato passou a exclusivamente telefónico, um dia não atendeu, no outro também não, e mais dias assim o telefone mudo, a Irene não atendia e não atendeu nunca mais.
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