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sábado, 17 de setembro de 2011

A heroína

Chamava-se Rosa, mas todas a conheciam por Ti Rosa Trapeira. Trapeira pela actividade que exercia, que consistia em recolher lixo que fosse possível aproveitar, naquele tempo ninguém falava em reciclagem, para depois vender, para além dessa actividade desdobrava-se por outras tantas que surgissem.
Era casada, o marido era um homem sisudo e rude, para mim, como criança que era, via-o como um brutamontes e mau como "as cobras", como ouvia dizer aos adultos, tratava-a mal, dava-lhe grandes enxertos de pancada, agredia-a verbalmente, obrigava-a a trabalhar arduamente para sustentar a família, tinha dois filhos, um rapaz e uma rapariga, não lhe dava praticamente nenhum dinheiro.
A Ti Rosa labutava de manhã à noite em tudo o que lhe pudesse render uns tacanhos escudos, a recolher e vender lixo, nos trabalhos agrícolas, na região onde morávamos havia uma série de quintas onde efectuava esse trabalho; apanhar fruta, legumes, ceifar, etc, muitas vezes a acompanhei nestas actividades, vistas por mim como divertimento nas férias escolares.
Era quase diariamente que via essa violência, que se refletia num envelhecer prematuro, no sorriso triste, nos olhos inchados de tanto chorar, mas nunca lhe vi um movimento ou palavra de revolta para impedir o agressor de levar avante a sua tirania, era em silêncio que recebia brutais bofetadas, socos e pontapés. Quando o brutamontes chegava a casa, muitas vezes embriagado, a juntar à ruindade era também alcoólico, se as coisas não eram ou não estavam como queria era certo e sabido que a Ti Rosa levava por tabela, era raro o dia em que eu não ouvia aquele "teatro", depois de satisfazer os maus instintos pegava-lhe pelos cabelos e atirava-a pela porta direitinha à rua, ou para o quintal, e ali ficava aquela pobre fizesse frio, calor ou chuva, passava a noite enrolada sobre si própria como um cão. Os filhos pré-adolescentes nunca intervinham, ainda que o pai pudesse matar a mãe nunca intervinham tal era o pavor que tinham dele, assim como os vizinhos também não intervinham, como era usual dizer, fazia parte das regras da sociedade hipócrita e preconceituosa da altura, que "entre marido e mulher ninguém mete a colher", o mesmo que dizer que ninguém tinha o direito e o dever de defender o agredido, mesmo que o agressor lhe causasse a morte.
Sentia uma repulsa tão grande por aquele homem que sempre que ele chegava a casa, numa motorizada, eu escapulia-me rapidamente para casa, assim como a filha para a sua, quando ouvíamos o som da motorizada, se estivéssemos na rua, morávamos em casas que tinham entre si outra casa, morarmos assim lado a lado era fácil assistir a toda essa "tragédia" que me fazia sentir solidária com a vítima, e tentava com a minha inocência minorar esse sofrimento indo com ela e com a filha para as suas actividades, assim não se sentiria tão só, e, usando a voz vinda do coração, pedia muitas vezes ao meu pai que a deixasse dormir dentro do seu carro, na garagem, com um cobertor de modo a proteger-se do frio ,quase glaciar, que o inverno nos oferecia, quando o "dedicado" marido a ponha na rua.
Os filhos fizeram-se adolescentes e começaram a trabalhar, o pai não os deixou estudar mais, um dia, nunca ninguém imaginaria tal desenlace, a Ti Rosa chamou um vizinho que tinha uma carroça puxado por um burro e despejou a casa de todos os "tarecos" que lá havia, deixou no chão um colchão, lençol, manta, almofada, um tacho um prato e talheres, o fogão e a roupa do brutamontes.
Durante anos, como formiguinha paciente e trabalhadora, foi amealhado dinheiro que colocava em latas, que por sua vez enterrava na terra do quintal, esta não tinha plantas, mas pode-se dizer que a terra floresceu. Previamente tinha alugado uma casa, levou os filhos com ela, o rapaz pouco depois partiu para a terra de onde eram oriundos, lá para o Minho, para junto do pai que já para lá tinha partido depois de fracassarem todas as tentativas para se reconciliar com a Ti Rosa.
Quando soube que tinha ficado viúva a Ti Rosa adquiriu por direito as terras que lhe pertenciam por nascimento, terras que os seu pais trabalharam toda a vida, e às quais o marido se julgava dono e senhor.
Os anos foram passando, e ainda que a distância fosse uma desvantagem, continuei a visitá-las e vi aquela mulher a rejuvenescer a adquirir auto-estima, a ficar ainda mais forte, continuando a ser a mulher trabalhadora e paciente como a conhecia. Foi para mim uma heroína, sacrificou-se pelos filhos, mas quando teve coragem para mudar o rumo da "história" fê-lo a pensar em si e no direito que tinha de ser livre, colocou um fim na "tragédia" que vivia.
Já faleceu há uns anos, mas continua bem viva na minha memória. Perdi todo o contato com a filha,que já tinha partido para o estrangeiro anteriormente, depois do funeral da mãe
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