Quando tinha um pouco de tempo livre gostava de a ouvir contar as histórias da sua vida. Tinha oitenta e oito anos, e uma doença terminal mantinha-a prisioneira numa cama. Relativamente lúcida, apesar da dose de medicamentos administrados, contou-me a "história" da sua vida.
Contou-me que por causa de uma estúpida discussão, já nem se lembrava porquê, zangou-se com o namorado, mais que namorado já noivo. Era o rapaz mais cobiçado lá na aldeia, dizia que eu também iria gostar dele se o visse, honesto, trabalhador, muito bonito, eu que nem quisesse saber, era um homem perfeito.
Lá na aldeia ficou "marcada", o mesmo que dizer "encalhada ", ali já nenhum homem olharia para ela, na primeira oportunidade deu o "salto", emigrou clandestinamente para França. Voltou vinte anos depois, com o "pé-de-meia" que amealhou montou um negócio numa vila próxima. Aí conheceu o marido, aos quarenta anos foi mãe, ficou viúva muito cedo, dedicou-se totalmente à filha e aos negócios que prosperavam a "olhos vistos".
Um dia a filha, que frequentava o último ano de engenharia, disse-lhe que tinha um namorado, não deu muita importância, tinha um namorado em cada ano do curso. Quando a filha terminou o curso e arranjou trabalho disse-lhe que estava noiva, foi pedida em casamento, queria apresentá-lo, queria que a mãe o conhecesse, e para isso nada melhor que um jantar lá em casa.
No dia em que viu aquele rapaz o coração acelerou, depois parou, ia-lhe dando uma "coisinha má", dizia a sorrir, o rapaz que tinha na sua frente, que lhe deu um beijo em cada face, era a cópia fiel do primeiro namorado, o tal da juventude. A filha já lhe tinha dito o seu nome, assim como o apelido, este realmente era igual, mas há tantos iguais, sem nenhum grau de parentesco entre eles, e também bastante vulgar, que não lhe deu importância.
Apreensiva contava os dias, as horas e os minutos para o jantar que a filha decidiu marcar num restaurante, para conhecer o futuro compadre, este também viúvo, o coração já dizia que era ele, sabia de antemão que já o conhecia, tinha a certeza que era ele, o amor da sua vida, aquele que nunca esqueceu. Gostava do marido, o pai da sua filha foi um bom homem, amigo, cumpridor das suas obrigações, respeitava-o, mas não se manda no coração, amar, amar, só amava o outro.
Quando o conheceu, isto é quando o voltou a ver, já não era o jovem que tinha na memória, mas continuava a ser um homem muito charmoso. O tempo parou, e nesse momento ambos souberam que nada mais os separava.
O companheiro, nunca quiseram casar, tinha falecido há dois meses, dizia que ele a chamava continuamente, tinha de partir, era urgente que partisse. Dizia que aqueles que Deus une nada nem ninguém os pode separar, nem a morte.
Ansiava por deixar a vida terrena, um dia partiu, não estava lá , estava de folga, mas creio profundamente que partiu serena, cheia de paz, ao encontro da sua "metade".